terça-feira, 16 de março de 2010

Desejos para quando eu morrer


Nunca fui afeito a velórios, cerimônias fúnebres, despedidas perpétuas, mesmo assim, senti o dia do luto como se deve sentir. Senti muitas perdas, absorvi incontáveis olhares lacrimosos, me consumi no absurdo em que algumas vidas que me entranharam na alma foram interrompidas.

Passei de largo ao conselho do Qoheleth por que fiz vista grossa à denúncia do Sêneca. Detestei certas músicas acopladas a pregações evangelísticas, pois apequenavam o momento do último adeus. Recusei consolos porquanto não eram sinceros, apenas antecipavam certas explicações para a morte, que igualmente rejeitei.

O Qoheleth me molestou quando disse que é melhor ir à casa do luto, pois naquela se vê o fim de todos os homens, e o Sêneca me abateu ao escrever: Viveste como se fosses viver para sempre, nunca te ocorreu a tua fragilidade (Sobre a brevidade da vida). Brevidade e fragilidade, dois incômodos estados que estão na base da nossa frágil constituição humana.

Proselitismo é inconveniente em qualquer espaço, diante do luto então, denuncia insensibilidade ao choro de quem tanto amou quem se foi, além de ser oportunismo, abutrismo institucional em torno de uma ideia dual da salvação. Na grade da homilética sermão de culto fúnebre tem de ter efeito centrípeto em que toda fala deve convergir para o ápice do momento, quando, para que a morte não seja em vão, alavanca o apelo para quem quer salvar a própria alma.

Um cochicho e um vozear, dois gestos em dois momentos distintos e distantes, me fustigaram de tal forma que ainda hoje ouço, não sem dor, seus ecos, enquanto os olhos de quem tanto sofreu naquele instante jamais secaram em minha memória.

O consolo da mãe do Alan, garoto de dezoito anos, foi pegar de relance insinuações de que a morte do filho querido serviria para um propósito maior, sendo que, havia ali alguns que estavam “desviados” dos caminhos, e que, Deus o levara - eufemismo substituto para "matar" -  para que outros retornassem.

O consolo da esposa e dos filhos do Pr. Silas foi ouvir em tom enfático do oficiante um agradecimento a Deus por ter levado seu excelente servo, comprovando com isso Sua soberania. As virtudes do pai que se sentava à beira da cama para ler histórias e orar com os filhos, que reservava tempo para idas ao parque com as crianças, que elogiava a esposa em qualquer oportunidade, são ofuscadas pelo ridículo das satisfações públicas, quando chorar a morte do amigo como o fez Jesus seria mais nobre.

Diante da morte é melhor lembrar da vida, sabendo que esta é breve e que nada justifica uma partida que abre uma lacuna deixando para sempre, presente, uma ausência. Diante da morte o gesto que a vida requer é de reverência à nossa frágil condição, e ternos afetos que acodem quem fica, com a resistência minada pela dor. Diante da morte esquematizar propósitos é desdenhar do Cristo que condoído não se expôs ao ridículo dando explicações, antes, sentiu-se impelido a devolver a vida que por si só legitima qualquer gesto.


Como não acredito em destino, tampouco em hora marcada, posso ainda velejar muitas léguas como posso  delas ser privado no próximo instante.


Por isso quando eu morrer só quero os amigos, os de longe que são muitos e os de perto que são poucos. Sem sermão proselitista, apenas despretensiosas declarações de amizade. Do livro sagrado quero que leiam meu trecho preferido, Eclesiastes 3.1-8. Quero que leiam ainda três poemas: Os Canhões do Silêncio, do José Chagas, A Casa Branca Nau Preta, do Pessoa e  Burnt Norton, do T.S.Eliot. Peço encarecidamente, nada de música gospel. Por gentileza toquem o Concerto de Colônia, do Keith Jarret e o Concerto para Piano nº 2, do Sergei Rachmaninov.

Não por mim, por que já não mais serei, mas pelos que ficarem que ainda estarão na ânsia de ser.

Alex.

quarta-feira, 3 de março de 2010

Do amor

A tradição popular dizia, amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo. De bom grado, antigos conselhos seguidos à risca que perpetuavam um sentimento de pertença a um grupo de privilegiados destinatários da graça divina. Para ser próximo sem ser filho de Abraão tinha de ser um prosélito circuncidado e iniciado nos ritos.

No entanto, um novo conselho inverte a lógica de convivência piedosa e extrapola a noção de generosidade divina. Amai os vossos inimigos, diz o Mestre, e orai pelos que vos perseguem, completa - dois movimentos que segundo o Cristo são práticas imprescindíveis para se tornar um filho de Deus.

Pois Ele não tem predileto, porque não encobre o sol sobre a cabeça do maldoso, nem regula chuva em sua horta, o mesmo clima que favorece o justo melhora também a vida do injusto.

O amor endereçado só a quem com amor retribui prova sua esterilidade no âmbito da vida. Na vida nada se colhe caso o objeto do amor seja aquele a quem só se quer bem e que retribui o gesto com a mesma intensidade; o sujeito mais vil é capaz da mesma troca.

Ser perfeito é exigência à quem, no peito, deseja abrigar o amor. Ser perfeito é dedicar atenção, cuidado e espaço nas preces aos desafetos e algozes. Ser perfeito é ser em amor. Amor que se mostra de fato quando o inimigo passa de alvo de rancor exclusivista à objeto do amor inclusivista, a exemplo do amor que emana do Pai.

Portanto, sede vós perfeitos como perfeito é o vosso Pai celeste.


Alex

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

Amar é partilhar do drama coletivo da humanidade




Numa sociedade onde o senso de egoísmo é apurado pela propaganda massificadora, que incita a competição de mercado, está se esvaindo a noção de que somos uma raça comum e que partilhamos uma mesma história, de mútua dependência .

O olhar lançado em direção do outro é um olhar predatório ; O que é que eu ganho ou perco me aproximando daquela pessoa? As relações são de interesse econômico. As amizades são virtuais e a morte do semelhante um fato banal.

Nesse contexto, de absoluto individualismo e desamor ao semelhante, a ética cristã se apresenta como única saída possível  para uma prática comunitária de respeito e compaixão aos que se ligam pela gênese comum dos homens.
Referenciados em Jesus percebemos que uma das suas grandes lições foi chamar doze homens de matizes diversos - alguns com caráter e comprometimentos  duvidosos, indicando que progredir como humanos só é possível  se nos relacionarmos e nos amarmos como iguais, mesmo quando tão diferentes. Homens com os quais ele gostava de estar junto, desejando com eles comer a sua última refeição. Homens com os quais dividiu seu projeto de vida; o Reino de Deus, identificando-se com eles de tal maneira que mesmo sendo seu mestre preferiu chamá-los de amigos. Homens tão intimos, aos quais, no Getsêmani, na  derradeira hora da vida,   pediu  a companhia.

Talvez por partilhar os dramas e se identificar de forma tão profunda com a raça humana ele chora a morte  de Lázaro, sentindo a perda do amigo, seu semelhante. Por isso eternamente se compadece dos que são esmagados pela dureza da vida, pois ainda chora com os que choram.
A noção de comum-unidade e dependência é o que move e faz viver a igreja. Antes de ir para o Pai, Jesus disse aos amigos: "Novo mandamento vos dou: que vos ameis uns aos outros; assim como eu vos amei, que também vos ameis uns aos outros. Nisto conhecerão todos que sois meus discípulos: se tiverdes amor uns aos outros" (Jo 13.34-35)
 Amar o outro conforme Jesus nos amou é colocar este outro como centro do nosso cuidado, reconhecendo que ninguém resiste aos baques da vida sozinho, ninguém existe sozinho, e que antes de buscar o meu benefício próprio tenho que me lançar na direção do outro e sanar suas necessiades.

No século XVII, doente, à beira da morte, o poeta e pregador inglês  John Donne, ao ouvir as badaladas insessantes dos sinos da igreja que anunciavam a todo instante a morte de mais um vítima da peste negra, escreveu versos maravilhosos, como quem percebeu que aquele drama que assolava a Europa era o drama coletivo de toda a humanidade.

"Nenhum ser humano é uma ilha. Se um punhado de terra é levado pelo mar, a Europa fica menor (...) A morte de qualquer homem rebaixa-me, pois estou envolvido com a raça humana, e, portanto, nunca procures saber por quem os sinos dobram; eles dobram por ti" (Meditações).

O drama coletivo da raça humana é o meu drama particular.

Reconhecer que a vida do outro me diz respeito é humanizar-me, é partilhar o mesmo sentimento do Deus que tanto amou  o mundo, que por ele se humanizou. Humanizar é  tornar-me aliado do Deus que não age pela meritocracia; do Deus que  faz nascer o sol  e faz chover a chuva sobre justos e injustos; que não faz acepção de pessoas. Ele mesmo, que  quer a vida eterna para todos,  para que onde Ele estiver, estejam  todos também.


Alex Carrari e Paulo Silvano

sexta-feira, 1 de janeiro de 2010

Este ano desejo viajar mais leve



Atribuir valor a certas datas comemorativas é costume comum entre as pessoas, independente de religião, cultura, nível social ou idade. Dentre as muitas datas que ao longo da vida festejamos a chegada de um novo ano é talvez de todas a mais universalmente comemorada.

Nos primórdios da humanidade a passagem para um novo ano era recebida com  sentimento coletivo de renovação. Enquanto que o ano velho representava o caos, o ano novo significava o retorno à ordem inicial da criação, como se um novo ciclo estivesse se iniciando no primeiro dia do novo ano.

Passados milhares de anos, mesmo de forma não muito consciente, continuamos abrigando em nosso imaginário a mesma noção, os mesmos sentimentos que nossos antepassados cultivaram. Assim, avaliamos o ano velho e projetamos o ano novo.
Com esperança renovada fazemos os velhos votos e as mesmas promessas de sempre; aquele regime que nunca obedece data estabelecida; a visita aos hospitais que nunca arranjamos tempo; colocar as leituras em dia quando os livros já viraram comida de traça; brincar com as crianças quando já se esqueceram dos brinquedos. Parece o mesmo filme, com o mesmo final sem graça.

Para este novo ano não faço promessas. Começo com esperança sim, mas sem os votos que, passada a empolgação inicial, sei que não vou cumprir. Quero aliviar a bagagem. Quero viajar 365 dias mais leve.

Sem promessas nem votos, para 2010 tenho apenas desejos, pois, caso não consiga realizar tudo o que pretendo, o desejo permanece. Desejos são leves e brotam do anseio por mais amor. Promessas e votos são artifícios da obrigação que se tornam um peso na consciência pelo que dissemos mas não fizemos.

Por isso, para este novo ano tenho apenas desejos.

Com os amigos desejo ter mais encontros. Com a minha comunidade de fé desejo mais bate-papo em volta da mesa. Com a família desejo ter mais tempo na grama do parque. Aos pobres desejo mais dignidade e alívio dos sofrimentos.   Ao espírito desejo boa música, belas alvoradas, e claro um pouco de arte. Com meu Deus desejo ter mais amizade, momentos de silêncio e paixão.

Que o Pai nos encha com a coragem e a esperança do seu Espírito neste novo ano.


Alex Sandro Carrari


segunda-feira, 23 de novembro de 2009

O encontro com Deus prescinde da nossa verdade sobre Ele

Paulo Silvano

O encontro com Deus é desconcertante e prescinde da nossa verdade acerca dEle. Os componentes da ambiência desse encontro apresentam-se cercados pela irracionalidade, enquanto indefiníveis e inacessíveis. Contudo, à medida que nos distanciamos desse momento arrebatador, do NUMINOSO, que se vai com o seu caráter espontâneo, embrenhamos no desvelo do mistério que cerca o encontro; nos ocupamos na construção de um outro equilíbrio.

O descobrimento do majestoso produz, à medida que patenteia o bruxulear da chama do tremendo, abafada pela racionalidade, aquilo que chamamos verdade.

Fundamentamos mais verdades enquanto vamos nos desconectando do numinoso. A transição do numinoso para a conceituação é desvantajosa, pois quanto mais nos apropriamos das verdades menos nos é dado perceber da beleza existente na relação com o Caminho, com a Verdade e com a Vida. Isso até que, desobscurecidos, nos rendamos ao fascínio de um novo encontro.

Imagem em: imagensbiblicas.wordpress.com/

terça-feira, 10 de novembro de 2009

Transcender: um exercício de liberdade



Alex Carrari


Somos seres de projeção. Ir além é nosso anseio mais primordial e nossa constituição de base. Como seres de projeção é que nos damos conta que existimos (ex), reagimos ao mundo circundante, construímos nosso ser em constante abertura. Assim, dizemos ex-istência, projetar-se para fora. O protesto aí se instaura. Existir é protestar sempre. Protestamos contra os enquadramentos sociais que nos são impostos. Rebelamo-nos contra as repressões eclesiásticas que nos querem tolher a capacidade de pensamento crítico. Insurgimos contra as interpretações dogmáticas castradoras da vida. Rompemos interditos que limitam nossa liberdade e empenho em transformar a realidade.


Protestamos, pois sabemos que somos mais. Nos sentimos mais. Sentir-se mais é afirmar a transcendência como dimensão intrínseca do ser humano. Nosso legado religioso tem de ser submetido à critica quando falamos em transcendência, pois, nossa percepção foi treinada para fazer um corte radical entre imanência e transcendência. Assim, nos disseram que o Céu é para cima , lugar onde Deus habita, os anjos circulam e os santos descansam. Aqui, no chão, no nível mais baixo, fica a imanência onde constatamos uma realidade hostil e inferior. Dois mundos que se contrapõem, mas que pela mecânica da oração e meditação, dizem, pontes são criadas que nos permite vislumbrar a transcendência; processo devidamente mediado pelas religiões.


Embora bela, essa estruturação não condiz com a realidade. Tudo é metafísica. Tudo é uma representação posterior à experiência do ser humano como ser histórico, seja, a experiência originária. São modelos de representação do mundo forjados por nossos ancestrais que já sentiam a perda da unidade entre si mesmos e o mundo sensível.


Céu/inferno, lá/aqui, corpo/alma, Deus/mundo, imanência/transcendência, tudo é metafísica. Nossa experiência originária, aquela situada no grau zero da existência, nos revela que imanência e transcendência não são aspectos distintos, mas dimensões de uma única e mesma realidade que somos nós. Enraizados, situados, porém abertos. Sonhamos para além daquilo que nos é dado como definitivo. Transcender não é um lugar a que se chega, antes, é aceitar o convite do Criador a gerar utopias, criar com Ele possibilidades que viabilizem a vida . Longe do consolo anestésico que as religiões oferecem, transcender é nosso desafio mais secreto, é nossa condição como seres nunca prontos, posto que o ser humano é um projeto infinito, que se realiza no ato supremo da liberdade divina outorgada a nós.