Os homens vão a Deus na sua miséria,
imploram socorro, pedem felicidade e pão,
ver-se livres da doença, da culpa e da morte.
Assim fazem todos, cristãos e pagãos.
Os homens vão a Deus na sua miséria
encontram-no pobre, humilhado, sem abrigo nem pão,
vêem-no engolido pelo pecado, pela impotência e morte.
Os cristãos acompanham a Deus no seu sofrimento.
Deus vai a todos os homens na sua miséria,
sacia-lhes o corpo e o espírito com o seu pão,
por cristãos e pagãos morre a morte da cruz
e perdoa a uns e a outros.
Dietrich Bonhoeffer (
Cristãos e Pagãos)
Dependência, a bela orientadora da vida cristã está desorientada, não se situa mais entre o dedicar a Deus o sentido último da existência e a coragem necessária para enfrentar as contingências da vida sem reivindicar a proteção divina na forma de anteparo, quando a experiência humana se mostra hostil.
Este é o caso; prioridades pessoais justificam o já gasto conceito de dependência de Deus que, repetido a exaustão, soa como confissão piedosa, humilde reverência dos aflitos que não dão um passo sequer na vida sem intimar auxílio divino.
Creio, emprestei corda para minha própria execução, afinal não foi Jesus mesmo que disse sem mim nada podeis fazer? Falta luz mas ainda é dia, sigamos então e quebremos as louças do tempo.
Confessar-se totalmente dependente de Deus, significa aos homens do nosso tempo que ele (Deus) é aquele que preenche as lacunas da existência abertas pelas deficiências descritas na bula do perfeccionismo ideal, que sepultou os sentidos inaugurando a época da razão, parindo o homem teórico. Trocando em miúdos, Sócrates e seu método. Vinho velho em odre velho, servido como novo.
As orações do homem teórico, também fiel teórico, são uma denuncia pública envolta em linguagem devota da fragilidade da confissão que não se sustenta no chão da vida. Chão pavimentado com polidas pedras da desconfiança. Os lábios que, na oração confessam dependência total de Deus entregam do que está cheio o coração pelos itens da lista de pedidos.
Ora por incapacidade de agir com coragem e criatividade, ora por desencargo de consciência, o fiel teórico aciona Deus quando uma falha nos discurso linear escrito sob a frágil impressão da lógica para a vida precisa ser preenchido para dar sentido e segurança ao roteiro.
A que ponto chegamos; do chamado à insegurança e a ser entregues como ovelhas para o matadouro, à reivindicação da proteção divina como se fosse direito adquirido.
Um pouco antes.
Quando eu era menino e pensava como menino, achava que Deus havia sido banido para a periferia da existência pelo homem científico, mas quando cheguei a ser homem percebi que a inabilidade do crente em trabalhar a vida com coragem foi o real motivo do seu exílio - de lá só é chamado para resolver algum problema, em seguida é banido novamente.
A pocilga foi posta a baixo.
Na longa noite a dentro em busca de sentido para Deus no mundo encontrei em Dietrich Bonhoeffer um companheiro solidário. O teólogo alemão percebeu que o mundo atingiu seu estado adulto e com ele os homens se tornaram não religiosos (que não apelam para o transcendente a todo momento na solução dos problemas ou explicação dos eventos naturais). Este homem aprendeu a levar adiante de si, por si mesmo, as questões mais fundamentais da existência sem recorrer a Deus como hipótese de trabalho.
Sensível a este movimento e para não incorrer no mesmo erro dos dicotomistas conceituais (aqueles que culpam a ciência pelo descrédito à "mensagem evangélica", quando deviam reconhecer a incoerência dos próprios discursos), Bonhoeffer fez uma nítida distinção entre atitude religiosa e fé cristã. Esta última a seu ver compreende a maturidade do homem não de forma distinta em oposição a Deus, mas como algo promovido e aceito pelo próprio Deus.
Embora o homem tenha se tornado não religioso, ele mantém uma atitude religiosa e esta é que, distinta da fé cristã converte Deus numa espécie de "Tapa Buracos da Existência" ou " Deus das Brechas", rebaixando-o a condição de um Deus
ex machina, obrigando-o a constantes saídas dos assuntos da vida à medida que estes se resolvem. Da prisão ecoa a voz do mártir de Tegel que pergunta: Como a palavra de Deus poderá mostrar sua absoluta soberania num mundo como o nosso? Se o estado adulto do mundo leva consigo a condição não religiosa do homem, como poderá Cristo vir a ser Senhor dos homens não religiosos? Outros espíritos mais angustiados se perguntam: Onde há um lugar para Deus então? Como não encontram resposta, condenam a evolução da ciência em todos os campos do saber como culpada pela calamidade em que estão postos.
Para outros, outra saída se apresenta; voltar para trás resgatando a mentalidade medieval, forjando um estado de inocência que custa caro à sinceridade para com Deus. Para Bonhoeffer, no entanto, a resposta é unilateral. Ele afirma que não podemos ser sinceros com Deus se não reconhecermos que é requerido de nós vivermos num mundo mesmo que Deus não estivesse nele. Isso significa primeiro, uma recusa a se apoiar em Deus para preencher as lacunas da existência. Segundo, requer do cristão reconhecer sua verdadeira situação diante de Deus como homem adulto. Sendo Deus este que nos faz saber que temos que viver como homens que vão adiante na vida sem necessitar dele como anteparo, tampouco como preenchimento dos vãos abertos pela nossa incapacidade de agir com coragem frente as ambiguidades da vida.
Este Deus exige de nós o exercício da liberdade no mundo, sem recorrer a ele como hipótese de trabalho. Aqui o conceito de dependência ganha contornos verdadeiramente decisivos.
Envolto em sua religiosidade o homem é remetido ao poder de Deus no mundo, o
ex machina. Ao contrário, o evangelho remete ao sofrimento e a fraqueza de Deus no mundo. Em Cristo, só o Deus que sofre pode ajudar-nos. Não fraqueza de falta de poder, mas fraqueza assumida na voluntária cumplicidade da encarnação em submissão e humildade, como aquele que se esvazia de si mesmo para se relacionar em sinceridade com Deus e o próximo, não se valendo da condição de Deus, nem da filiação com o Pai para viabilizar fuga aos enfrentamentos da vida.
Paradoxalmente, Deus encontra lugar e poder no mundo a partir da sua impotência. A evolução descrita para o estado adulto do mundo quebra uma falsa imagem de Deus em essência mítica, e possibilita redescrever sua imagem sob o olhar agora liberto do homem para o Deus da Bíblia.
Neste ponto a estrada chega a uma bifurcação. Uma via leva a permanência no estado infantilizante do homem, que busca Deus nos limites da deficiência para a solução dos próprios sofrimentos. A outra leva ao Getsêmani, onde o Cristo convida para velar com ele no ápice do sofrimento de Deus no mundo.
Vivenciar com o Cristo os últimos momentos no Getsêmani, velar com ele no momento crítico em que clama pela possibilidade de passar o cálice sem ter de bebê-lo constitui a experiência da fé despojada do seu revestimento religioso, a verdadeira metanóia. A atitude do Cristo em não levar em conta os próprios sofrimentos em reverente submissão a vontade do Pai é o revés do gasto conceito de dependência de Deus que, mesmo repetido a guisa de confissão piedosa, não faz liga com a vida cristã levada com fé.
Despida do seu revestimento religioso a fé pode falar desde o mais além, acolhendo o pedido do Cristo no Getsêmani em resoluta reverência, enchendo o pleno da vida da certeza de que sem ele nós nada podemos fazer. Nos atos do Cristo, dependência a bela orientadora da vida cristã, não é algo parcial, como na leitura do homem religioso, tampouco é evocada para preencher as lacunas abertas, antes, é um ato total de vida. O caminho até o Getsêmani é o da entrega. O caminho de volta é o do comprometimento, para dentro da vida. De dentro da vida é que o Cristo ensina que devemos amar a Deus. Cristo transcende por ser um homem para os outros homens. No coração da vida é que vamos encontrar Deus.
O conceito de dependência na atitude de Jesus ganha contornos éticos e lança então a fé como fundamento do conceito. Na atitude do homem religioso a falta de fé o faz buscar a Deus para suprir as falhas entre as partes. Na atitude do cristão adulto a fé o faz buscar a Deus no turbilhão da vida que é onde nos tornamos verdadeiramente dependentes, onde nos tornamos homens para os outros homens.
alex carrari
Postado originalmente em
herdeiros do deserto, 12 de maio de 2009