Nunca fui afeito a velórios, cerimônias fúnebres, despedidas perpétuas, mesmo assim, senti o dia do luto como se deve sentir. Senti muitas perdas, absorvi incontáveis olhares lacrimosos, me consumi no absurdo em que algumas vidas que me entranharam na alma foram interrompidas.
Passei de largo ao conselho do Qoheleth por que fiz vista grossa à denúncia do Sêneca. Detestei certas músicas acopladas a pregações evangelísticas, pois apequenavam o momento do último adeus. Recusei consolos porquanto não eram sinceros, apenas antecipavam certas explicações para a morte, que igualmente rejeitei.
O Qoheleth me molestou quando disse que é melhor ir à casa do luto, pois naquela se vê o fim de todos os homens, e o Sêneca me abateu ao escrever: Viveste como se fosses viver para sempre, nunca te ocorreu a tua fragilidade (Sobre a brevidade da vida). Brevidade e fragilidade, dois incômodos estados que estão na base da nossa frágil constituição humana.
Proselitismo é inconveniente em qualquer espaço, diante do luto então, denuncia insensibilidade ao choro de quem tanto amou quem se foi, além de ser oportunismo, abutrismo institucional em torno de uma ideia dual da salvação. Na grade da homilética sermão de culto fúnebre tem de ter efeito centrípeto em que toda fala deve convergir para o ápice do momento, quando, para que a morte não seja em vão, alavanca o apelo para quem quer salvar a própria alma.
Um cochicho e um vozear, dois gestos em dois momentos distintos e distantes, me fustigaram de tal forma que ainda hoje ouço, não sem dor, seus ecos, enquanto os olhos de quem tanto sofreu naquele instante jamais secaram em minha memória.
O consolo da mãe do Alan, garoto de dezoito anos, foi pegar de relance insinuações de que a morte do filho querido serviria para um propósito maior, sendo que, havia ali alguns que estavam “desviados” dos caminhos, e que, Deus o levara - eufemismo substituto para "matar" - para que outros retornassem.
O consolo da esposa e dos filhos do Pr. Silas foi ouvir em tom enfático do oficiante um agradecimento a Deus por ter levado seu excelente servo, comprovando com isso Sua soberania. As virtudes do pai que se sentava à beira da cama para ler histórias e orar com os filhos, que reservava tempo para idas ao parque com as crianças, que elogiava a esposa em qualquer oportunidade, são ofuscadas pelo ridículo das satisfações públicas, quando chorar a morte do amigo como o fez Jesus seria mais nobre.
Diante da morte é melhor lembrar da vida, sabendo que esta é breve e que nada justifica uma partida que abre uma lacuna deixando para sempre, presente, uma ausência. Diante da morte o gesto que a vida requer é de reverência à nossa frágil condição, e ternos afetos que acodem quem fica, com a resistência minada pela dor. Diante da morte esquematizar propósitos é desdenhar do Cristo que condoído não se expôs ao ridículo dando explicações, antes, sentiu-se impelido a devolver a vida que por si só legitima qualquer gesto.
Como não acredito em destino, tampouco em hora marcada, posso ainda velejar muitas léguas como posso delas ser privado no próximo instante.
Por isso quando eu morrer só quero os amigos, os de longe que são muitos e os de perto que são poucos. Sem sermão proselitista, apenas despretensiosas declarações de amizade. Do livro sagrado quero que leiam meu trecho preferido, Eclesiastes 3.1-8. Quero que leiam ainda três poemas: Os Canhões do Silêncio, do José Chagas, A Casa Branca Nau Preta, do Pessoa e Burnt Norton, do T.S.Eliot. Peço encarecidamente, nada de música gospel. Por gentileza toquem o Concerto de Colônia, do Keith Jarret e o Concerto para Piano nº 2, do Sergei Rachmaninov.
Não por mim, por que já não mais serei, mas pelos que ficarem que ainda estarão na ânsia de ser.
Alex.